Às vezes, me dá um desânimo danado. Sabe por quê? Porque não vejo nada de substancioso em termos de mobilização local no que diz respeito ao conflito israelo-palestino. Claro que existem círculos específicos que trabalham o tema, mas tenho a impressão de que nada repercute suficientemente.
Um confidente opina que a comunidade judaica se torna cada vez mais conservadora e corrente de transmissão inerte do oficialismo israelense. Acato a hipótese com ressalvas.
Meu contraponto opinativo é a “crença” de que exista, usando antigos chavões, uma “maioria silenciosa” que, simplesmente, em vez de pôr a boca no trombone, se afastou de qualquer ativismo na questão e foi cuidar de outros quintais menos pedregosos. No entanto estas questões “fervem” nos EUA, na França. Daqui, praticamente niente. Continuamos uma espécie de Ilha da Fantasia. Um exemplo foi o caso da repercussão da turnê de Caetano e Gil a Israel, iniciada e movida quase toda ela por forças externas.
Fico pasmo quando vejo nos grandes órgãos de imprensa artigos assinados por pessoas que, rigorosamente, desconheço, atacando a política deste governo israelense. Nada a opor, muito pelo contrário, mas onde estão aqueles que serão os galvanizadores de um basta local, um grito efetivo contra a manipulação surrealista da realidade israelense, resumida hoje em impasse, imposta por certos falsos “donos” da voz comunitária?
Fico esperando e nada acontece. O leitor poderia debochar arguindo que também espera o messias, porém ele não aparece. Mas quantos existem na mesma situação de desengajamento forçado?
Tudo se dá em uma espécie de surdina que se explica em parte devido à neutralização de alguns de nossos entes comunitários, posto que se dividem entre estar “dentro” e “pensar fora”, procurando compatibilizar o que, acredito, a partir de um certo momento, se tornou impossível.
Permanecer submisso, pela omissão ou pela inércia, a falsos porta-vozes de uma unidade que não existe é inócuo. A única forma possível de se quebrar este contexto é se fazer de indesejável alternativo, mas para isto não basta um texto teórico, um artigo ali, uma ilusão acolá. Faz-se necessária a presença de uma grande organização focada no assunto, composta e apoiada por aquelas já existentes.
As facções comunitárias judaicas devem, para o bem ou para o mal, ter lideranças nítidas, que expressem posições. Hoje só vejo, de um lado, uma elite viciada em ser porta-voz escrava e sectária, tipo alinhamento automático, do governo Netaniahu, além de alguns carreiristas oportunistas do baixo clero procurando embarcar no que julgam que mais lhes convém, e de parte do segmento judaico anestesiado, alguns se deixando levar por lemas completamente ultrapassados, demagógicos, por opções violentamente obtusas, repressivas e anti-humanitárias, se não pior, para ser diplomático. Será que não enxergam o óbvio?
Projeto Calendas Gregas
Este raciocínio não é de esquerdistas, extremistas empedernidos, “humanistas” (que em Israel virou palavrão), mas, creio, de pessoas com predisposição liberal e, principalmente, com a lógica da razoabilidade e do bom senso. Este perfil eu acredito que exista em abundância e seja talvez majoritário na nossa comunidade. Quem sabe? Vejamos. Pode-se esperar moderação frente ao extremismo equivalente deste governo israelense? Nós somos os heróis e eles, os palestinos, os bandidos?
Para quem acredita nas versões propagandísticas engendradas pelas agências do atual governo de Israel, nada a declarar. Para quem tem um mínimo de dúvidas e percepção crítica e não anaboliza de primeira tudo que é chutado por aí, o caso parece ir além.
Qualquer um na posição de “eu não disse?” pode apostar, sem temer surpresas, em outra explosão de violência mais adiante, e seguidamente outra e outra, mas ficará somente com a fama de profeta do óbvio. Já são mais de cem anos de experiência comprovada.
E sempre os mesmos bordões gastos. Em vez de se circunscrever a abrangência do conflito, delimitando-o como israelo-palestino, um conflito nacional, desavisados fazem questão de incluir todos os países árabes e todos os muçulmanos, como se já não faltassem impasses. É o típico contrassenso explícito. Parece que querem um apocalipse geral e irrestrito e não uma solução pontual.
Na verdade, se alguém perguntar ao Bibi ou ao Yaalon [ministro da Defesa de Israel] qual é a solução, o plano, A ou B, receberá respostas fragmentadas, sem nenhum horizonte visível de realização. É o Projeto Calendas Gregas. Nem bantustões, nem fronteira unilateral, nem Estado racista binacional, nem expulsão de todos os palestinos para a Jordânia, nem a morte deles (embora vontade não falte) … Não há objetivo a se alcançar.
Revelo um segredo em primeira mão: não existe plano. O governo de Israel não sabe para onde vai, não tem clareza ou certeza de aonde quer chegar, sua factibilidade e os meios para isto, a não ser construir assentamentos à larga, promover a defesa momentânea e deixar o assunto para as próximas gerações. Ele não nos diz qual o desenho que imagina para o futuro israelense. Só assinala aqui e ali o que não quer, em um empurra-com-a-barriga sem fim.
Sabe por quê? Se revelar, vem uma enxurrada de sanções. Aliás, mesmo não revelando elas já se fazem sentir. O futuro é impossível até para eles, pois sabem de sua impraticabilidade pública.
Resta o “isto que está aí”, chamado de status quo ou “administração de conflito”, mas qual seria a reação palestina para cada uma destas especulações acima e para esta corda que não se desenrola? É difícil imaginar?
A Boa Israel
Ora, se quiserem mais violência continuem a fazer o que estão fazendo, mas não reclamem, pois é mais do que sabido que a situação dos palestinos não passaria, nem passará em branco, e apostar no conflito eterno ou nas “próximas gerações” tem implicações devastadoras.
É muito fácil especular que o que está aí é vantajoso quando o fogo está brando. Israelenses só imaginam o status quo como possível quando pouco acontece, quando a dominação parece tranquila. Porém, quando os incêndios pipocam, reclamam. Imaginam que o conflito pode ser administrado com a imposição unilateral de uma tranquilidade forçada. Já os palestinos se veem perante uma ameaça existencial, para usar o jargão bibiano vigente, e a partir daí tudo é factível. É mais do que o óbvio ululante.
Eu não diria que um Estado palestino é garantia certa e absoluta do fim da violência, pois não sou futurólogo, mas garanto que sem ele ela é certa, cíclica, interminável, crescente e trágica. A prova está aí, diante dos nossos narizes, não é previsão.
Condenar as facas unilateralmente está se tornando difícil. Os ingênuos vão dizer que defendo o terror, mas desde a divulgação de que 300 crianças palestinas em Gaza foram mortas e apresentadas como danos colaterais ou escudos atrás dos quais os do Hamas se defenderiam, os bandidos passaram a se equivaler. A abjeta utilização da população civil como refém e objetivo de guerra dos dois lados é fato. A vantagem moral agora é mera propaganda para enganar ingênuos e trouxas. A guerra nivelou por baixo, como todas as guerras. Não é o bem contra o mal. É preciso acordar e ver a demagogia abjeta que esconde a realidade diária. Não fazer nada e manter o tal do status quo é a melhor garantia de que as coisas piorem, de que a selvageria prevaleça. Perdemos Oslo e não ganhamos nada.
Será que estamos falando ao vento ou as evidências se acumulam? Estamos isolados mundialmente ou isto é propaganda de esquerdista? Não importa o mundo ou há erosão contínua da legitimidade do Estado? A demografia mostra alguma coisa ou é invenção de derrotistas? Existe opressão contra um povo ou isto é balela da oposição?
Quem tem a cabeça no lugar não deve sonhar com nenhuma Grande Israel ou Média Israel, mas com uma Boa Israel. Todas as paranoias megalomaníacas ou terminam em troças e hospício ou terminam em tragédias humanitárias. Chega um momento em que a presunção de se estar fazendo uma realpolitik esperta vira uma podridão só, injustificável, e uma sangueira sem limite. Isto é uma ponderação para lá de razoável, racional e baseada exclusivamente no que temos aí na nossa frente.
Fico pasmo que, diante do atual impasse, haja quem se julgue juiz entre as partes, quando o principal não é estabelecer quem tem razão, este combustível ideológico para a contínua confrontação. Precisamos de moderadores de postura pragmática para sair da mediocridade da soma zero e ver o que se pode conseguir para que haja dois ganhadores mas igualmente dois perdedores, pois a satisfação completa de um é a tragédia, idem, completa, do outro. Não há outra saída, possivelmente tanto para nós, judeus, e israelenses como para eles, palestinos. É isto ou a prevalência do anjo da morte.
A comunidade judaica no Rio de Janeiro e no Brasil produziu uma gama enorme de profissionais liberais, gente da academia, políticos, pessoal das artes e cultura, artistas, que na minha infinita crença, são herdeiros de um humanitarismo de fundo moral, mesmo quando ovelhas desgarradas. Está na hora de esta gente de valor, aproveitando o embalo do que acontece por aí, se incorporar a um bom combate comunitário, que não renegue suas crenças íntimas, mas se insurja contra aqueles que profanam, demagogicamente, estes pressupostos ancestrais. Ouso dizer, utilizando o coletivo nós, que temos, sim ‒ os próximos e os distantes ‒, peso, importância e responsabilidades pelo que acontece no Estado de Israel, e que já passou da hora de dar um basta audível ao que o governo israelense, desgraçadamente, promove e alimenta.
O que espero é simples: repercussão.
Especial para ASA
Clara Goldfarb
Parabéns, Henrique, pelo corajoso, lúcido e cristalino texto.
Outros, individualmente ou institucionalmente que, antes de você, fizeram críticas no mesmo diapasão, já foram taxados de antissemitas.
Fanny Cytryn
Infelizmente preferimos cuidar das nossas vidinhas e nos esconder pra nao ver os sofrimentos de todas as guerras onde perdem todos.